ÔNIBUS ERRA CAMINHO E QUASE ENTERRA PASSAGEIRO
Um trajeto comum virou caça ao homem no coração esquecido da cidade.
Eram quase 11h33 de uma quarta qualquer quando um ônibus velho conhecido resolveu enlouquecer. O trajeto rotineiro entre Rudge Ramos e o Terminal de Santo André virou desvio mortal. Em vez do terminal, a lata velha entrou onde não devia: um miolo esquecido, suspeito, engolido pelo concreto e pelo medo.
O passageiro ficou. Achou que sairia em algum ponto familiar. Não saiu. Dez minutos depois, a última mulher desceu — pálida, muda, sumida. O cobrador então cravou a sentença com cara de desprezo: ponto final, garagem, desce. Sem explicação. Sem piedade.
Do lado de fora, o nada. Lugar nenhum. Motoqueiros cruzando como relógio de assalto, viatura passando para “averiguar”, uma praça com cara de cemitério mal cuidado. Dinheiro? R$ 1,40. Celular? Morto. Táxi? Lenda urbana. Helicóptero? Só se fosse do noticiário policial.
No telefone, o caos doméstico. O pai perguntava onde. O filho não sabia. A mãe chorava e já via o corpo na sarjeta ao amanhecer. A cidade, mais uma vez, cuspia seus filhos como lixo fora do horário.
A salvação veio torta, como tudo ali. Um amigo perdido, um nome de rua arrancado de um morador às meia-noite e pouco, roupa social no meio da bocada. Rua João Docinho. Foi quando o Gol branco, rebaixado e barulhento, começou o ritual: pópópópó. Passa. Volta. Passa. Volta. Olha. Marca.
Na quinta volta, o carro subiu a calçada. A morte veio em marcha lenta. Um ônibus surgiu do nada — milagre de metal. Corrida, entrada às cegas, descida sem pagar. De novo o deserto. De novo o pópópópó. O homem virou estátua. Virou saco de lixo. Sobreviveu por invisibilidade.
No fim, uma barata conhecida — agora de moto — fez a ponte com o mundo dos vivos. O amigo chegou. O Gol seguiu atrás. O posto de gasolina virou porto seguro, com cerveja alheia e passado bebendo no balcão. Sinistro é pouco. A cidade ensinou: rotina é só até a próxima esquina errada.
Na cidade que não perdoa distraídos, errar o ônibus pode custar a vida.
QUEM GANHA
- O acaso, que decide quem vive e quem some
- O medo, que mantém todo mundo na linha
- O silêncio, cúmplice oficial da cidade
QUEM PERDE
- O trabalhador comum, jogado fora da rota
- A ideia de transporte público seguro
- A cidade, que normaliza o quase-enterro diário